vistodaprovincia

9.07.2015

BCE Confidential - Nos concursos docentes, escolha dos critérios é secreta porque mesmo pedida não é mostrada

45 dias depois de 222 requerimentos feitos em Julho a outras tantas escolas a pedir a ata do conselho pedagógico que contém, fundamenta e legitima os critérios de concurso de contratação de docentes em uso nas escolas (e na BCE) e que só são autonomamente definidos se o forem nesse órgão, só 6 acabaram por enviá-la (2,7%).”

Se  fosse um candidato a pedir o documento para vir a reclamar será que o obtinha? E se não obtivesse e tivesse sido prejudicado que poderia fazer?

 pastas processos

Mais um sinal de que o concurso chamado BCE, sem nenhuma vantagem, tem todos os defeitos dos concursos nacionais (a dimensão do número de candidatos e procedimentos, a exigência de recursos informáticos ou a complexidade) e junta-lhe os defeitos graves de concursos locais (a possibilidade de abastardamento de critérios, além dos efeitos perversos como as colocações múltiplas ou a falta de transparência, por exemplo).

Agora há muitos sites de jornais que põem no início das suas notícias o tempo que demoram a ler, para os leitores não desanimarem.

Este texto vai demorar a ler mas acho que vale a pena para os envolvidos nessa trapalhada alucinante chamada Bolsa de contratação de Escola (BCE).

Se chegarem ao fim, podem ter alguma utilidade ou, pelo menos, sorrir com a ironia geral da história que vou contar.

“Cada um destes horários [da BCE] é um concurso autónomo e cada candidato pode concorrer a cada um dos concursos e a todos os lugares disponibilizados para os grupos de recrutamento, desde que possua qualificação profissional.”

Assim se referiu o MEC ao concurso da Bolsa de contratação de escolas (BCE) quando mandou, há dias, as listas de candidatos para as escolas. Toda a confusão e tratos de polé que esse concurso produz existe, afinal, por via do dogma ministerial da autonomia.

A lei diz, há muito tempo, que as escolas portuguesas têm Autonomia (assim mesmo, com maiúscula, como se usa para as transcendências).

Para os efeitos que tal proclamação legal produz até podia dizer que as escolas levitavam.


O efeito nulo é o mesmo. Nem o ministério lhes dá autonomia verdadeira, nem elas a assumem como deviam. O caso da BCE é muito ilustrativo.

E essa autonomia (que etimologicamente quer dizer a capacidade de fazer as próprias regras) é dos diretores ou das escolas?

A BCE e a contratação de escolas em geral foi criada em nome da autonomia das escolas mas acabou por se tornar um sinal tristemente visível da “autonomia dos diretores”.

As competências e poderes dessa suposta autonomia das escolas exercem-se através de órgãos. O diretor, que é unipessoal, é um deles mas, os outros órgãos, coletivos, têm poderes que este não lhes pode retirar.

Por exemplo, definir critérios para concursos de docentes, que não é só um poder dos diretores.

E se os critérios forem só definidos pelo diretor, sem intervenção no caso do órgão coletivo que é o conselho pedagógico (como a lei exige), são obviamente ilegais, por causa dessa usurpação de competências.

Surgiu-me então a pergunta: será que, como a lei diz, os critérios dos concursos da BCE foram todos aprovados no Conselho pedagógico das escolas, como as regras de autonomia de escola exigem, sendo esse o órgão da escola competente?

É que, se não foi assim, os critérios são ilegais e os concursos, idem (nota que fica à atenção dos candidatos que se sintam prejudicados).

O que torna curioso que um concurso autónomo seja feito à revelia dos órgãos da Autonomia…..

Para saber o que realmente se passava só tinha um caminho. Usar os mecanismos da lei. No caso a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos que consagra um princípio que, em alguns sítios da nossa administração, ainda não foi bem entendido: a regra é que qualquer cidadão pode consultar os documentos sobre processos produzidos na administração.

As excepções à regra geral de acesso aos documentos administrativos são isso mesmo: excepções (e tem a ver com proteção de outros direitos fundamentais).

Sem me alongar muito, vale a pena, para obter informações, consultar o site do organismo que trata deste assunto. Aqui
Em termos simples, se o concurso da BCE é fruto da ação administrativa do Estado, quem o paga são os contribuintes. Então os contribuintes (com que tanta gente enche a boca mas, neste ponto, às vezes, esquece) têm o direito de saber o que lá se passa e ter acesso aos documentos em que se concretiza o concurso.

Mas há transparência na BCE?

A transparência é essencial em concursos em que concorrem milhares de pessoas (as notícias falam mesmo de milhões de atos de candidatura, número que deveria fazer pensar um pouco quem organiza a palermice).

Nos outros concursos docentes, realmente nacionais (ou regionais), com critérios unificados para as vagas que estejam a concurso simultaneamente, todos os que concorrem para uma mesma vaga conseguem, consultando uma única lista, ver porque não ficaram colocados, sabendo porque razão outros os ultrapassaram, com base em critérios claros.

Com a BCE, um professor que tenha concorrido a 2 grupos de recrutamento em 100 escolas (e não são todas as possíveis) terá de consultar 200 listas, individuais (se só houver um horário em cada escola e indo a cada um dos sites de cada uma das escolas).

Quase certamente não tem o mesmo número de ordem em cada uma, porque cada uma é diferente da outra, mas imaginemos que anda à roda do número de ordem 20 em cada uma delas.

Com esse número de ordem, até teria a possibilidade de ser colocado mas, para perceber o que lhe aconteceu, teria de consultar 200 listas e percorrer 19 linhas em cada uma delas para ver a sua situação (isto é, 19x200 linhas = 3800 linhas).

Se fosse o número de ordem 100 (e há listas com várias centenas de candidatos) teria de percorrer 5 vezes mais linhas de ordenação em 200 ficheiros pdf diferentes de múltiplos sites (e para descobrir certamente que não estava colocado….).

Mas para entender bem o que consta dessas listas, ainda teria um problema adicional: como os critérios são diferentes de escola para escola (com base em lógicas de escolha irracionais, que se lamenta que o ministério permita com base no dogma limitado da suposta autonomia) teria de saber que critérios são esses e como foram definidos.

Talvez nos sites das escolas encontre os critérios mas, se tivesse dúvidas e quisesse contestá-los, precisaria de conhecer como foram definidos e se o foram legalmente.

E, diz a lei, que para serem legalmente definidos, não basta o diretor indicá-los na aplicação de concurso. Antes têm de ser sujeitos ao Conselho Pedagógico da escola onde o concurso ocorra (do que resulta que as trapalhadas de concurso e os critérios injustos são responsabilidade de todos os professores dessas escolas porque o Conselho pedagógico emana deles e tem de concordar com os critérios do diretor)

Ou a transparência não está mesmo na moda ou a lei não é para cumprir

Eu quis saber como isto andava a funcionar realmente e, vai daí, fiz o seguinte:
  • Com fundamento na Lei de acesso aos documentos administrativos, e usando o meu direito de cidadão de saber o que a administração anda a fazer, porque a pago com impostos, fiz a 13 de Julho de 2015 (há mais de 45 dias, estava o processo a começar) requerimento a 222 agrupamentos e escolas que participam na BCE, para receber a ata do Conselho Pedagógico (CP) em que este órgão se tivesse pronunciado sobre os critérios adoptados.
  • O texto do requerimento está aqui e foi publicado na altura. Na segunda página, está a lista dos endereços de escolas a que o requerimento foi enviado por correio eletrónico.
  • Saliento que não pedia os documentos com os critérios mas sim, e expressamente, a ata em que eles foram aprovados. Aquilo que queria saber era, por exemplo, se o documento foi aprovado sem debate ou se na reunião houve quem se pronunciasse contra e contestasse as escolhas mais abstrusas. Isto é, o que eu queria saber é se o CP fez o seu papel ou foi mero notário do que lhe puseram na frente. No limite até poderia descobrir que o CP aprovou uma coisa e no site de concurso foi colocada outra (já aconteceu, não se espantem).
  • De 222 requerimentos, obtive 15 respostas (isto é, 93% das escolas/agrupamentos nem se dignaram responder). Tal até pode ter acontecido porque o endereço estava errado ou estava desativado (o que é mau, porque mostra mau funcionamento dos estabelecimentos, visto que os endereços que usei são os divulgados publicamente para esse efeito). Mas estou quase certo que, na esmagadora maioria, não respondeu porque assim o entendeu: ou acham que a LADA não é para cumprir, ou acharam que “no seu entendimento” não tinham de responder, ou pior, se for escavar mais, ainda vou descobrir que alguém lhes disse para não o fazer.

As 15 respostas recebidas

 As respostas foram de diversos tipos:
  • Envio puro e simples dos documentos pedidos, eficaz e louvável, sem delongas ou subterfúgios, que era o que se esperava de quem entende o que se lhe escreve e cumpre a lei.
Os 5 agrupamentos e escolas que o fizeram merecem que se lhes refira o nome: Escola Secundária Eça de Queirós – Póvoa de Varzim; Agrupamento de Escolas de Freixo (Ponte de Lima); Agrupamento de Escolas de Paço de Sousa e Escola Secundária da Batalha e Agrupamento de Escolas de Aver-o-Mar.
Mal vai o país quando o exótico é que alguém cumpra a lei e chegue a merecer louvor e destaque por isso.
  • Não enviaram a ata pedida: 9 agrupamentos dos 15 que responderam. O requerimento dizia explicitamente ata do conselho pedagógico mas alguns decidiram ler documento com critérios. Talvez por sonsice ou porque não tinham a ata para mostrar. Dada a população envolvida acredito que entenderam o requerimento mas ninguém pediu esclarecimentos para dúvidas.
1 dos 15 respondeu, após uma longa troca de mails, que incluiu a menção de que a escola não tinha capacidade técnica de enviar a ata, atitude que depois corrigiu. Vale a pena ler essa troca de mails. Aqui
Dos 9 não cumpridores houve outros casos de agrupamentos que, não cumprindo, obrigaram a troca de mensagens e, mesmo sendo mencionada a obrigação legal, continuam a ignorar o que se lhes pede.

Assim, em termos finais, de 222 requerimentos a pedir a ata do conselho pedagógico, que contém, fundamenta e legitima os critérios de concurso de contratação de docentes em uso nas escolas (e na BCE) e que só são autonomamente definidos se o forem nesse órgão, só 6 acabaram por enviá-la (2,7%).

 As atas em causa são documentos de acesso público inquestionável, que qualquer pessoa pode pedir para ver, mas, às tantas, deve haver documentos classificados pela lei de segredos de Estado mais fáceis de arranjar. Os que estão em segredo de justiça consta que sim.

E, como verão, se lerem o texto anexo (a cujo rascunho chamei novela, por razões que entendem se lerem), que lista cada um dos 15 casos que se dignaram responder, ainda tive algum trabalho para ter algo que devia ser imediato (honra seja feita aos 5 exóticos que listei acima).

Vale a pena ler, para ver em todo o seu esplendor, o desvario de quem acha que não tem prestar de contas e pode fazer basicamente o que lhe apetece.

Mais um sinal de que o concurso chamado BCE, sem nenhuma vantagem, tem todos os defeitos dos concursos nacionais (a dimensão do número de candidatos e procedimentos, a exigência de recursos informáticos ou a complexidade) e junta-lhe os defeitos graves de concursos locais (a possibilidade de abastardamento de critérios, além dos efeitos perversos como as colocações múltiplas ou a falta de transparência, por exemplo).

Agora imaginem que era um candidato prejudicado, que queria impugnar o concurso e precisava da cópia da ata, que não me deram, para fundamentar o requerimento de defesa dos meus direitos.
Eu até posso rir e fazer humor com as respostas que levei porque não sou candidato. O candidato prejudicado fazia o quê? Chorava?