vistodaprovincia

11.11.2015

Aos 20 anos na profissão docente sou novo e insensato demais para se atender ao que diga.


 O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída:
todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis
de contentar nas outras coisas não costumam desejar
 mais bom senso do que aquele que têm.
 
René Descartes 
 
Este texto vai ser sobre mim. Todos os textos são sobre o seu autor, mesmo aqueles que falam de assuntos abstratos.

Mas este vai ser mesmo sobre mim. Afinal um blogue é um espaço de opinião pessoal em que temos o direito a alguma introspeção.

O aviso fica feito mas creio que, sendo sobre uma pessoa concreta, talvez possa ter algo a ver com o geral dos professores da minha geração e sobre o valor que a nossa participação tem e recebe.

A conclusão, que me deram a ouvir, há dias, de forma que pretendia ser incisiva, neste mês, em que passam 20 anos exatos sobre a minha primeira aula, é que sou novo de mais e, por isso, o que quer que diga sobre escola: não interessa nada.

Pelos vistos, não terei idade para opinar sobre a forma como se gere e funciona uma escola ou como devem ser organizados os seus processos.

Esta minha afirmação de mocidade imberbe é a feliz constatação conclusiva de uma conversa, que tive recentemente, no contexto em que discutia (advogando contra elas) medidas de gestão numa escola. Foi a resposta que levei e que reconheço que me calou de forma definitiva.

Até porque a minha alegada juventude (que contrasta com as rugas na testa e os vincos nos cantos dos olhos) não tem remédio. Porque não posso envelhecer-me artificialmente.

A erupção pública, ao ponto de me ser assacado, deste meu “síndroma de ignorância juvenil sobre assuntos na minha profissão” surge, curiosamente, na altura em que completo 2 décadas nela.
 
 
 

20 anos de escola mais os outros 23 antes


Comecei a lecionar em 1995.

Bisneto, neto e filho de professoras e de professores cresci a ouvir contar histórias de escola, a almoçar com problemas de escola, a jantar, ao som de debates de escola.

Ao entrar para História, recusava a ideia de que iria dar aulas. Porque a exposição precoce à escola, pelo lado dos que dela fazem profissão, e às suas tristezas e amarguras, me fez achar que não era para mim.

Na Faculdade, fugi ao Ramo Educacional (há-de haver alguém, no grupo 400, que não conheço, e que, hoje, tem mais 2 ou 3 valores de graduação por eu ter escolhido não fazer as cadeiras pedagógicas e o estágio nessa altura, sendo que entrava lá direto).
 
E isso, porque, dar aulas, incluía pensar no sofrimento que via que a escola trazia aos que nela vivem a vida toda. Principalmente o da minha Mãe, que amando profundamente a ideia de escola, destruiu a sua saúde no processo.

Contudo, como para ela, ambos pouco dados a místicas esotéricas, a escola não foi para mim (nem é) vocação, no sentido em que os religiosos são chamados a qualquer coisa elevada.
 
É uma escolha que o tempo produziu, nas circunstâncias históricas da própria vida. E que tem de ser confirmada regularmente, face às alternativas.

Ainda durante o curso, fui repórter numa rádio e, acabado o curso, fui comerciante. Ainda hoje o seria (ou outra coisa qualquer) se o acaso (não o Destino, entenda-se) não se tivesse interposto. E poderei rever as escolhas sem frustração ou grande drama.

Um passeio de bicicleta, um cachorro à solta, frente à roda, e eis-me com uma fratura femural “de velho”, quase um ano sem andar e a reaprendê-lo em sessões diárias penosas. E reaprender o que todos acham banal e comum, ensina muito sobre a aprendizagem. (Parêntesis para sugerir a leitura de Oliver Sacks e o seu  livro Perna para que te quero , que ajuda a entender bem coisas destas).

Meses em casa, sem nada para fazer, num tempo sem TV cabo, e eis que a minha Mãe se sai com a ideia de concorrer nos mini-concursos. Lá lhe fiz a vontade.

Um professor, mesmo um que começou coxo, coxo continua a caminhar


Escola Gomes Teixeira, no Porto, em 1995.
 
Fila para o concurso, uns 600 candidatos de papéis na mão. Uns minutos de espera na fila, com muletas, mas a pé, eu a desistir (afinal não estava ali senão para fazer a vontade à minha mãe) e a multidão, à volta, começa a dizer que não é justo que um tipo visivelmente aleijado, nem tenha uma cadeira para se sentar.
 
Essa foi a 1ª vez que experimentei uma das virtudes coletivas solidárias do meu grupo profissional, como parte dele.

A funcionária, chamada para fornecer o assento, volta com a cadeira e, face à turbulência, com a menção adicional: não precisa de ficar na fila, tem direito a atendimento preferencial. Como comecei coxo, às tantas, é por isso que as minhas opiniões continuam coxas, agora, não por causa das muletas, mas da juventude excessiva.

No contexto, em que não tinha assim tanta esperança de voltar a andar, ser especial na fila, deu-me tristeza, mas poder sair dali depressa, lá me deu alento para arrastar a perna solta até ao balcão e entregar a papelada. Meses depois, já sem muletas, a perna bamboleante levou-me à primeira escola e à primeira turma.

Descobri que gostava daquilo que, na infância, me parecia uma profissão assustadora, no custo emocional e pessoal. E parece que até tenho algum jeito....

Corri algumas escolas (estive colocado numas 12), trabalhei num centro de formação profissional, fui formador, passei pela gestão de uma IPSS, com creches e jardins de infância, e pela direção de uma escola TEIP e, aos 43 anos, acumulei uns milhares de horas de formação sobre educação e gestão de escolas em politécnicos, universidades e centros de formação. Passei por outro Ministério (Administração Interna) 6 anos e, por lá, aprendi como é triste e desengonçada a burocracia central, regional e local do nosso MEC. E poupo-vos a mais detalhes entediantes desse currículo que tem como ponto forte uns 4000 e tal alunos que podendo dizer mal de mim, nunca me foram indiferentes. 
 

Prenda dos 20 anos: continuar a estudar

 
Tudo isto para dizer: esforcei-me para não parar ou estagnar e aprender alguma coisa no caminho, atitude que mantenho todos os dias. Não sou o melhor professor mas, pelo menos, o melhor que posso ser (e, às vezes, sinto, o melhor que me deixam ser). Não acredito em Excelências, como estado que se atinja, mas em melhoria e progresso.

A formação que fiz foi mesmo estudada (e não "certificada pela via da experiência", como Bolonha anda a permitir – mal - com base em “relatórios de vida” com 50 páginas). Até porque, um professor que não acredita em estudar é como um padre que não acredite ou um cozinheiro que recuse o tempero.

Mas, aos 20 anos disto, acho que conheço razoavelmente o bom e o mau da nossa profissão. O momento histórico que vivemos talvez me esteja a influenciar no juízo com aromas pessimistas mas de fundo alegre.
 
Valemos pouco no contexto social e, se tivesse dúvidas de me alegrar com a comemoração, uma simples conversa de circunstância sobre questões de escola reforçou a alegria: além de ter falta de bom senso, na reflexão sobre escola (leia-se, na minha linha de leitura - ainda não estou suficiente enquistado e penso demasiado fora da opinião comum) sou novo demais para quem, com uns 55 ou 56 anos, olha para a minha opinião singela, com a sobranceria voluntária e deliberada, de mais 10 anos em cima.

Resta-me o consolo de que não faço o mesmo aos, poucos, que são mais novos que eu. Acredito que, por exemplo, os contratados de 20 ou 30 anos, com quem trabalhei, terão percebido que não acredito em sabedorias adquiridas por via etária ou geracional mas pelo estudo e pela experiência crítica, guiada por este.

E que, quando lidava mais com colegas mais novos não lhes colava na testa etiquetas com idades, para lhes desvalorizar as opiniões. Mesmo tendo mau feitio q.b. para não concordar com eles.

Argumentos de autoridade, sem explicação ou fundamento, que se entendam, para lá da adesão a modas, são a negação da própria profissão.

Aliás, para ensinar os alunos, a simples autoridade "de saber e poder" é mau mecanismo.

Como diria a minha Mãe, do alto dos seus 35 anos de experiência: muitos anos de má experiência, não valem uma boa formação.

E, por isso, a minha comemoração dos 20 anos, até em homenagem a ela, foi voltar ao estudo. Porque, neste trabalho, o suposto bom senso, por conta de muitos anos e idade, não chega e é realmente muito pouco. Ou poucochinho…

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