vistodaprovincia

4.22.2014

Notas emocionais a uma facada de Maria Filomena Mónica



1. “ (…) Fala da escola pública como se a composição das turmas se não tivesse alterado. (…) Basta entrar numa escola contemporânea para se notarem as diferenças, desde os alunos, de origens sociais, étnicas e religiosas variadas até aos docentes muitos deles jovens exaustos (…).” (Professora Doutora Maria Filomena Mónica, em crónica no Expresso, sobre o que pensa muita gente da sua geração)

2. “Querem que os ciganos venham para a escola e tragam a faca de casa e depois ensinem os professores a atirar facas!” (Professora Doutora Maria Filomena Mónica, no Programa Olhos nos Olhos na TVI24, sobre os autores de programas escolares “novos ricos” que quererão que os alunos apliquem saberes adquiridos)

Este jovem exausto (e não é de preencher inquéritos enviados pelo Ministério da Educação)[1], de tanto ouvir dizer asneiras sobre a escola pública actual, ficou intrigado quando voz amiga me telefonou a recomendar que visse a reposição do programa, onde pontifica Medina Carreira, porque, lá para o fim, “te vai saltar a tampa”.
Fiquei atónito, e mais exausto ainda, de tanto se repetir o que da escola se conhece só de ouvir dizer, mesmo que seja por via de uns diários da trincheira, cujo valor informativo fica desde logo esbatido, quando os autores ficam anónimos, por alegado medo de represálias.
Não queria acreditar que a pessoa que escreve a citação 1 e outras frases no mesmo tom soltasse, com o ar ligeiramente enfatuado, de quem está cheia de pena de não ter chegado a dar aulas numa escola básica, a ideia gasosa de que ciganos e facas são realidades quase indistinguíveis.
O respeito intelectual e científico pela Senhora Professora Doutora e que, curiosamente a ideia de fazer dois livros, que li, com base em diários de professores, até podia ter reforçado (mesmo se os diários são superficiais, lamechas e carregados de auto-comiseração), esvaneceu-se nessa frase indigna de uma humanista, que conheça a realidade do que é a discriminação dos ciganos, por essa Europa fora e em Portugal.
E, ainda para mais, sabendo-a tão preocupada com a educação dos pobres e as possibilidades de elevação da sua condição por via da escola.
Pois, mas para os ciganos, restam as facas…. Uma tirada ao nível dos comentários de leitor a notícias em sites de jornais em que prolifera o anti-ciganismo.
O sub-tom de fazer paralelo automático entre facas e ciganos (sendo estes crianças e jovens em idade escolar) e achar que nada mais poderiam trazer de saberes adquiridos, senão atirá-las e mostrarem-no aos professores, indicia aquele racismo subtil que marca o destino de tantos jovens alunos dessa comunidade.
Ensinar alunos ciganos não é fácil porque o racismo, que efetivamente existe contra eles e as suas famílias e de que a frase é objetivamente exemplo, tolhe o caminho que a escola pode fazer e reflecte-se nas vítimas e na sua atitude reactiva.
Os ciganos não vêm atrás da ponta de uma faca. Em mais de uma década e meia a trabalhar com a comunidade, como professor e noutras funções, encontrei sorrisos, respeito e consideração, mesmo em conflito, e não essas mitologias.
A pior ameaça para a sua integração e o caldo favorável à continuidade do racismo é imaginarem-se as facas e a ameaça, mesmo quando não existem e desculpar-se a exclusão generalizada, pelo medo da faca imaginada inexistente (ou pior, da caçadeira, da sujeira, da roubalheira e outras coisas geradas pelo medo ao diferente).
Para uma tão acalorada defensora da escola pública trouxe-me grande tristeza que Maria Filomena Mónica repetisse, nos exactos termos, o que dezenas de vezes ouvi pais dizer para justificar o “não queremos os nossos filhos com eles”, atitude que esvazia e torna homogéneas escolas e jardins-de-infância. Tudo com base em ideias assentes na ignorância sobre a comunidade cigana portuguesa, para lá das parangonas dos jornais. E, tudo isto, pelo medo a crianças por serem ciganas.
Sei que recentemente, numa polémica com outro docente do ensino básico, a dada altura da argumentação, a autora da frase invocou com autoridade o seu largo currículo, que não desconheço e respeito.
Para consolidar e fortificar os argumentos científicos e técnicos da minha indignação, que julgo justa, e que senti ao ouvi-la, a amplitude do meu não é bastante, mas sempre podia citar alguma literatura ou remeter para múltiplos relatórios oficiais. Calculo que facilmente a Senhora Professora Doutora lhes aceda e até os conheça melhor que eu.
Podia falar-lhe com recurso ao conhecimento pessoal de largos anos de contacto com a comunidade e de um conhecimento razoável daquela com quem trabalhei.
Mas este comentário acaba por ser de indignação emocional, mais que intelectual, porque nesse domínio até poderia perfilhar (depuradas do paternalismo para com os jovens exaustos) as palavras do excerto 1. A minha mãe, que teria hoje a idade da autora das frases, e mais de 35 anos de escolas básicas e secundárias, dizia coisas parecidas às frases 1. Infelizmente, o meu coração (e o dela, professora de biologia, cientificamente anti-racista, iria pelo mesmo) não consegue conformar-se com o que se ouviu no excerto 2.
E, por isso, prefiro ser agora, também eu, lamechas e falar de frustações: a frustação de saber que, dos miúdos que moram no sítio, que as fotografias documentam no link anexo, (http://artephotographica.blogspot.pt/2009/02/os-ciganos-das-alminhas.html), fotografados há uns 5 anos, só um conseguiu chegar ao ensino secundário e muito poucos ao 9º ano (e, se no fim, foi porque desistiram, no princípio, foi a ideia que se lhes entranhou, e que não é falsa, na análise prática, de que não valeria a pena estudar porque “o professor diz que estudar ajuda a melhorar a vida mas ninguém dá emprego a um cigano”). Pensarão nas facas?
Ou, a frustação de saber que, 40 anos depois do 25 de Abril, é preciso fazer apelos a que os poderes administrativos e judiciais se preocupem com os níveis anormais de abandono escolar na comunidade e façam algo para se cumprir a lei, como apelou recentemente o Grupo Consultivo para a Integração das Comunidades Ciganas (CONCIG) neste documento http://www.acidi.gov.pt/noticias/visualizar-noticia/5345534ef3dd5/grupo-consultivo-para-a-integracao-das-comunidades-ciganas-concig .
Creio que a minha frustação é partilhada por muitos professores, que se esforçam todos os dias, por lutar contra os preconceitos contra os seus alunos que a sua frase simboliza bem. Mas, apesar do esforço, as facas longas estão a vencer….

Luís Sottomaior Braga (professor de História do Ensino Básico)


[1] A burocracia escolar dava um livro mas provavelmente Maria Filomena Mónica ía descobrir, se realmente fosse fundo, que muitas das coisas que imputa centralmente, têm também muito a ver com a gestão local escolar e até com os próprios professores, campeões da geração das grelhas, tabelinhas, fichinhas e relatórios e, por si próprios, competidores ilustres no campeonato da acta mais longa. Ou, nem tem a ver com o Ministério da Educação, mas com as DRE’s, ou lá como se chamam agora, ou com as operações de financiamento europeu (POPH’s, FSE’s, Potenciais Humanos e quejandos) para coisas que o orçamento de Estado devia pagar mas, que para serem financiadas, geram enxurradas de papel.