vistodaprovincia

5.24.2013

Perguntas provincianas `a volta de um quase manifesto sobre educação

Há uma frase de Almada Negreiros de que gosto muito de me lembrar ao ler certas iniciativas gongóricas de políticos portugueses, tipo manifesto, sobre qualquer coisa que acham que vai salvar a Pátria. "Quando nasci já tinham sido inventadas todas as palavras que podiam salvar o Mundo. Só falta salvá-lo."

Lembrei-me disto ao ler um texto fraquinho (menos na parte em que não fala da sua experiência efectiva), mal informado, sobranceiro face aos professores do ensino básico e secundário e snob, em termos gerais, de Bruno Maçaes, cujo currículo académico muito relevante e de qualidade, está publicamente acessível, mas que inclui, alem da sua actividade académica, a função de assessor politico do 1º ministro e, por isso, é  para todos os efeitos Político e pode ser verberado como se faz a qualquer outro eleito (no caso dele, eleito por um, o primeiro-ministro, que o nomeou).

Num blog do Expresso escreveu Oito ideias para transformar as nossas escolas (quase um manifesto).

A primeira observação é que, ainda bem que só são 8 ideias (porque, mesmo tão poucas, já custa a digerir o seu desligamento da realidade educativa do país que chega a ser constrangedor, em alguém que supostamente deu ou da´ conselhos ao 1º ministro). Melhor ainda é ser só um “quase manifesto”. Se fosse mesmo um manifesto ia cair na linha dos “manifestos-rudimentares-para-fazer-parecer-os-autores-especialistas-em educação-com-base-em-ideias-gasosas”.

Não lhe respondo como acho que se devia. Outros com mais qualidade e currículo já se deram a esse trabalho. http://educar.wordpress.com/2013/05/24/outro-genio/.
Obscuro professor de província (com gosto na sua aurea mediocritas) faço-lhe só perguntas porque o texto pôs-me mesmo a pensar.

Para isso tenho de reproduzir parte do seu texto, que organizou por pontos, e de que destaco algumas frases, que considerei mais saborosas, para lhe expor perguntas, sobre as quais poderei ter algum proveito em reflectir ao informar-me melhor sobre as translações do seu pensamento(e assumindo, desde já,  que não descerá da estratosfera para-ministerial para responder a este minhoto façanhudo).

1.       Qualidade dos professores. “(…) É importante perceber que um professor só será uma figura respeitada e admirada se for capaz de tomar decisões importantes sobre o curriculum, manuais e leituras suplementares e métodos de ensino nas suas aulas. Para os alunos, será um professor com ideias próprias, com independência e autonomia, e não um funcionário controlado por outros. O curriculum nacional finlandês não é mais do que um enquadramento, deixando aos professores a liberdade de decidir o que irão ensinar e como.”

    •       Para lá da confusão (desculpável num texto curto) entre a observação que faz sobre o currículo e sobre os professores posso deduzir do seu texto que considera que os professores são funcionários controlados por outros? Que não são genericamente, e em média, capazes de tomar decisões importantes sobre o currículo e de (genericamente, e em média) “ter ideias próprias”? Isto foi só ofensa, distracção ou sopranço de alguns outros assessores informais que gravitam na área do governo?Em que se baseia para dizer que estamos assim tão desviados da Finlândia? E já agora, ao falar de currículo está a falar de que nível de ensino (pré-escolar, 1º, 2º, 3º ciclo ou secundário)? E finalmente, nesta coisa da funcionalização docente, já levou em conta recentes medidas do Governo a que serve, nomeadamente, no currículo de Matemática (em que avaliações cosmopolitas dizem ter o programa substituído produzido bons resultados mas mesmo assim foi substituído…)?
2.       Torre de controlo. O melhor ponto onde exercer um elemento de controlo sobre o sistema educativo é provavelmente a formação de professores. A Alemanha apenas permite a admissão aos cursos universitários para professores aos alunos classificados no terço superior no fim do liceu. Singapura é o melhor exemplo de uma torre de controlo colocada na formação de professores: existe apenas uma escola superior de educação para futuros professores do ensino secundário.

    • ·        Sendo este o naco de prosa mais saboroso (dava por si só um manifesto, mas tinha de ser secreto), a pergunta que salta ao espírito é logo: controlo para quê?Para fazer funcionários? E já agora este aluno que chegou a completar o “liceu” (por acaso ensino secundário) no 1º terço "superior" nacional (acidente que, por pudor, não esmiuça) pergunta: como pensa atrair esses alunos, com salários de 1300 euros líquidos, ao fim de 20 anos de trabalho e cortados e recortados, e de menos de 1000, no início? Como o dinheirinho tem implicações no trabalhinho não será que mais depressa os do "1º terço superior" vão acabar assessores políticos de alguém, em vez de ensinarem criancinhas? O meu provincianismo pouco conhecedor permitiria levantar algumas objecções ao controlo à moda de Singapura, quer por causa da diferença cultural (bem sei que a outra dizia que a sociedade não existe mas a cultura acho que não foi extinta), quer por causa de outros problemas mais no domínio humano, que o controlo à moda de Singapura, às vezes, traz à memória. Mas insisto: torre de controlo para quê e porquê?
3.       A escola descentralizada.

A bifana de ideias aninhada sob este título, gordurosa mas suculenta, como convém a uma bifana à portuguesa, inclui “o papel dos directores de escola” e aterra outra vez na Finlândia porque o exemplo finlandês também é importante, “porque uma escola autónoma é sobretudo uma comunidade: os directores de escola têm de fazer parte desta comunidade, ou seja, têm de ser também professores, com horários mais reduzidos de aulas e menos alunos.”

    • Como compagina esta sua “manifestação”, com agregações em mega-unidades e aumento de carga lectiva que o “seu” governo decretou? Como encaixa isso num processo de clara politização da designação dos dirigentes escolares (nem me arrisco a perguntar se sabe o que é uma CAP)?
    • Diz de passagem que “Afinal o que funciona bem numa empresa também deve funcionar bem na escola: responsabilidade por resultados, incentivos e autonomia.” Só lhe pergunto, alguma vez geriu uma escola impedida de ter lucros para se autorizar a ser tão dogmático? E pelo menos gerir um serviço com milhares de clientes e que não vise o lucro, seja ele qual for?
    • Diz depois O número reduzido de horas de aula em Portugal permitiria introduzir ideias novas nesta área, tornando progressivamente os professores mais responsáveis por tarefas que agora são desenvolvidas centralmente, como o curriculum e a avaliação.” Quem lhe disse que isso é assim? Ao falar de avaliação está a falar da dos alunos ou da avaliação de desempenho dos professores? Ou da avaliação organizacional (das escolas)? E nessa, da interna ou da externa? Sabe que uma das queixas maiores das escolas é o tempo localmente consumido nessas tarefas de avaliação? Alguma vez avaliou alguém usando os mecanismos do SIADAP para saber realmente como é?
    • “Uma possibilidade, acolhida na Finlândia, é permitir que sejam as autarquias a nomear os diretores de escola.” Escola-comunidade, director politicamente nomeado?
    • “Na Finlândia e também nos Estados Unidos o resultado é notável: eleições locais ou autárquicas que são sobretudo sobre a qualidade das escolas e não sobre obras públicas, com um controlo muito mais poderoso das populações sobre esta qualidade.” Resultado notável nos Estados Unidos? Tem a certeza? Viu bem os testes internacionais? E porque repete a palavra controlo?
4.       Alunos por turma. Os professores japoneses são os primeiros defensores de um número elevado de alunos por turma. Quais as vantagens? Primeiro, mais competição, maior esforço dos alunos para se destacarem. Segundo, maior diversidade de ideias e discussões mais interessantes. O sistema japonês assenta num ideal de discussão e esta pode ser mais rica com uma turma maior. Terceiro, um número de alunos por turma elevado permite libertar horas para preparar as aulas e ter tutorias individuais com alunos. As turmas no Japão têm entre 35 e 45 alunos.

    • Este bocado é de antologia e cai no domínio do anedótico. Mas já que teve coragem de o escrever, será que tinha coragem de aceitar o convite deste professor há 20 anos do ensino básico, e dar uma manhã (para eles e o docente estarem fresquinhos) de aulas de História a turmas de 22 alunos (sobre um qualquer tema à sua escolha a um qualquer ano do 1º ao 9º)? No fim, só peço que me responda se vai continuar a achar melhor que sejam mais 8 ou 13 na sala….(e pondo-se no lugar dos alunos, entenda-se).
5.       O fim das barreiras. Este é o objectivo central daquilo a que nos Estados Unidos se chama liberal arts: uma educação que desenvolve nos alunos a capacidade de pensar pela própria cabeça, de aplicar o seu conhecimento a novas situações, de assumir riscos, de falar em público, de criticar e aprender com a crítica. Se há um ponto comum entre sistemas de educação tão diferentes como o japonês, finlandês ou coreano, os três com resultados extraordinários nos testes internacionais, esse ponto é o objectivo declarado de fazer os alunos pensar, mais do que fornecer respostas.

    • Pensar pela própria cabeça é bom, se não estamos contaminados por uma visão desligada da realidade, história e cultura do país que queremos governar e pensar. A aprender com a crítica espero que alguém o possa ajudar neste campo das escolas básicas e secundarias mas, mais ainda, gostava que aprendesse com a realidade mas, para isso, como diria Camões (esse cosmopolita da Renascença) é preciso “ver claramente visto”, indo aos sítios que queremos purificar em reformas e observando (e não só reproduzindo preconceitos).
    • Mas sem me desviar do assunto, os testes internacionais de que fala são mesmo todos os que são feitos ou só aqueles que convém ao seu preconceito sobre o tema? (O Conselho Nacional de Educação, onde há muita gente que sabe do que fala e conhece o real, e até fez sessões públicas sobre isso, explicará sem dificuldade ao Senhor Assessor Politico do que falo… tem nomes em sigla mas não e´ PISA).
6.       Ensino vocacional. (…)
Prescindo de citar esta parte que soa demasiado a conhecido refrão de um bloguista de nome visigodo mas muito degradado especialista encartado em educação.

    • Quem lhe disse que o ensino com componente vocacional a partir dos 16 anos não existe em Portugal? (creio que aqui partilha, com os Verdes e com Fernando Negrão, o problema que acontece a quem fala de educação sem realmente saber: uns queriam que a Constituição se estudasse, o outro que os alunos nem lhe tocassem, mas não cuidaram antes de ver como era, antes de jorrarem os seus debates ideológicos sobre a realidade que só sonhavam).
      7.O caso da Coreia, onde vivi, é talvez o mais difícil de compreender. Num período de duas ou três décadas, a Coreia passou de alguns dos piores indicadores do mundo em escolaridade para o primeiro lugar em vários testes internacionais.

    • Esta parte é a mais instrutiva do seu texto. Fala mesmo do seu saber de experiência feito. in loco. E até responde à pergunta, que eu faria: quais as condições para transpor realmente experiência coreana em Portugal? E´ possível? 
    • Diz, “A minha explicação é que a Coreia soube criar uma relação muito próxima entre o sistema educativo e a economia: ambos foram criados praticamente do nada e ao mesmo tempo.”
    • O problema é que este nosso país, mesmo com uma historia mais curta que o povo coreano, tem um percurso histórico diferente e, apesar de nos falar da necessidade de um “choque”, não me parece que, contra a matriz histórica longa do país, esse choque se faça para fazer de nós coreanos (que, como povo, não me parece que queiramos, possamos ou, sequer, gostássemos de ser).
8.       Uma educação cosmopolita.  Aqui temos um caso de facto extraordinário. (…) Continuamos incapazes de transformar a aprendizagem do português e da literatura numa educação verdadeiramente cosmopolita.

    • Aqui só me permito observar que, antes do cosmopolitismo efervescente, convém ser um português culto na sua cultura, para evitar o problema dos deslumbrados iluminados estrangeirados que querem mudar Portugal sem o conhecerem.  Acabam muitas vezes como um certo monarca a achar que o povo que governam (mal) é uma “bichuílha” ou “uma piolheira”. 
    • No seu texto quase parece : “Mais um passo, e “bora lá” a abolir a literatura portuguesa". Mas, mesmo o que afirma, não é, sequer por aproximação, verdade. Já alguma vez ensinou Português no ensino básico? Ou, por exemplo, conhece os currículos de Inglês ou outras línguas estrangeiras do Secundário?
E, permita-me insistir numa ideia (e infelizmente ando a ter de a repetir demais) que recebi da minha mãe, professora do ensino secundário, (também ela do "terço superior") durante 35 anos. Porque acha que percebe da forma de organizar o ensino básico e secundário português e teoriza sobre o que comprovadamente conhece mal no ponto de partida real? Porque degrada, ao nível da banalidade mal informada e de “ouvir dizer”, de forma tão chocante (mesmo a quem percebe só um bocadinho do quotidiano e, de algum estudo, nesta parolice de país, como eu) um saber técnico complexo (e que se estuda) sobre como se organizam escolas, currículos, processos de avaliação e outros aspectos da educação e da gestão escolar?
Faria o mesmo e teorizaria tão desabridamente sobre como organizar, dimensionar, gerir ou definir no seu âmago essencial, se o tema fossem blocos cirúrgicos de cardiologia ou unidades de hemologia? Ou será que o saber especializado dos médicos lhe merece mais respeito e menos ousadia que o dos professores e directores de escola?