vistodaprovincia

11.22.2012

Raça Galega….



"Quando os nazis levaram os comunistas, calei-me, porque, afinal, não era comunista. Quando prenderam os sociais-democratas, calei-me, porque, afinal, não era social-democrata. Quando levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, não era sindicalista. Quando levaram os judeus, não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando me levaram, não havia mais quem protestasse"
Martin Niemoller
Normalmente não escrevo aqui sobre casos concretos que vivo no trabalho de professor. Tenho falado muito por aqui de escola, gestão de escolas, administração escolar, concursos escolares e outras coisas escolares. Mas há dias tive uma estreia nas minhas experiencias de professor e, por isso, vou falar de um caso concreto cujos intervenientes, como é óbvio, não identificarei.
Pela primeira vez, em 18 anos disto, vivi a seguinte situação: disse a um aluno para ler um livro e um “responsável parental” decidiu em casa que o aluno não o ia ler porque a dita responsável sabia do tema em causa mais que eu (o que, a ser verdade, podia ser discutido mas não desautorizando totalmente o pouco que eu possa saber, entenda-se).
A história seria engraçada, se não fosse tão triste e significativa da ignorância que grassa entre pessoas, com certificação alta, mas instrução e educação insuficiente. Porque, nestas coisas de comportamentos e consciência cívica, às vezes, o diploma de 12º ano não garante que se seja um bom cidadão.
Para se entender o episódio é preciso ter algum enquadramento. Na escola onde trabalho há uma forte presença de ciganos (cerca de 12% dos alunos). E, ressalte-se, na frase anterior não usei a palavra etnia, com deliberada intenção (aliás, normalmente não a uso).
Na verdade, os alunos (e seus pais), se perguntados pela sua identidade, responderão com toda a naturalidade que são portugueses e ciganos, porque se identificam a si próprios como tal (e, na primeira categoria de identidade, o BI o prova, com uma indicação de naturalidade que faz deles darquenses, como eles diriam, ciganos de Darque). E nestas coisas de identidade o que nós dizemos de nós próprios é o mais importante.
Por isso, dizer que são ciganos, simplesmente, não tem mal rigorosamente nenhum, porque os próprios o fazem sobre si próprios e se auto-designam como tal.
Mas, nesse grupo há alguns que até outros ciganos designam como “galegos”. Moram num acampamento, são paupérrimos e é assim que os restantes falam sobre a sua identidade (e, eles próprios, pouco resistem a essa etiqueta, que tem usos ofensivos). Não gostam da etiqueta mas as suas prioridades na vida incluem o problema de sobreviver em condições indignas de um país europeu e que diria simplesmente que bradam aos céus.
Mas nesta coisa das designações e das palavras, diga-se que há até alguns ciganos que se auto-designam usando a palavra raça. Alguns alunos nossos soltam frases em que dizem “raça cigana” ou até, nomeando esse grupo particular do acampamento, como “de raça galega”.


The R…. Word

Numa escola, por muito que a luta seja inglória e tenha de ser constante, é sempre completamente inaceitável que se use a palavra raça para designar pessoas que participam na mesma comunidade escolar. E surge, portanto, neste passo do contexto, o problema da inaceitabilidade da palavra em contexto educativo e dificuldade de como o fazer constar.
É infelizmente muito comum que se ouça entre alunos, ciganos ou não, usar a palavra raça e alguns até dizer que há “ciganos puros” e “ciganos galegos” (por vezes, ofensivamente chamados “do monte”) e até dizerem que algumas outras pessoas não são da sua raça. A polícia de linguagem não pode ser um procedimento exaustivo de uma escola e a pedagogia destes assuntos não é muito fácil. Combatem-se séculos de hábitos e discriminação e contextos sociais e familiares de pensamento muito instalados.
 De qualquer forma, tenta-se desincentivar sistematicamente o uso da expressão raça e explicar a sua origem não cientifica e até anti-cientifica. Mas o facto é que ela aparece nos discursos dos alunos e, quando aparece, é uma oportunidade de esclarecer sobre o racismo, de pensar essas atitudes e explicar pontos de vista alternativos.
Aliás, para algumas pessoas com aromas fortes de racismo subtil, a pior espécie porque a mais entranhada, o facto de haver ciganos a falar de raça justifica o seu próprio racismo contra eles, como se uma coisa tivesse a ver com a outra.
Ainda há tempos tive longa conversa com alguém licenciado em área com forte formação em Biologia (e que, por isso, tinha obrigação de saber mais) que dizia que “raça” sempre se usou e, por isso, continuará do alto da sua ignorância a usar a palavra para falar de outras pessoas até porque essas pessoas, algumas iletradas, também a usam. Este raciocínio pouco ético justificaria chamar nomes, se outros chamarem, ou, bater, se os outros baterem, daí nem valer a pena tentar racionalizar sobre isto.

Ler livros…. Coisa perigosa

Um destes dias, num contexto de resolução de um conflito entre alunos, houve um que, não é cigano, que identificou um colega como sendo de “raça galega”. No contexto do conflito, isso não tinha relevância nenhuma, até porque o autor do deslize até nem se tinha portado mal e tinha ajudado a sarar o conflito. Mas ao ouvir a expressão lá lhe expliquei (e porquê) que o colega tinha nome, e que não repetisse a expressão à minha frente porque “raça galega” era termo que não se aplicava a pessoas e encerrava um contexto racista.
Para vincar o ponto em frente a outros alunos lá expliquei porquê (e espero que quem lê dispense a explicação, em nome da economia). Mandei-o ir à biblioteca da escola, pedir que lhe dessem um livro sobre racismo e que o lesse e daí a uma semana aparecesse para me explicar se tinha entendido o que eu estava a tentar dizer. Alguns, face ao que aconteceu a seguir, poderão dizer que podia ter feito de conta que não ouvi, mas não me arrependo, até porque, a citação inicial de Martin Niemoller ressoa muito na cabeça nestas alturas.
E o que disse para fazer, realmente, nem é castigo. Desde quando ler livros interessantes o é? Pareceu-me uma forma sensata de lhe mostrar (e discutiu comigo a validade da minha posição sobre as palavras, entenda-se) que é preciso ter cuidado com o que dizemos e que os livros ensinam coisas que evitam deslizes destes.
Foi à Biblioteca e a minha colega que lá esta deu-lhe o livro O racismo explicado aos jovens de que deixo link anexo e que, confesso, eu próprio ainda não li (aceitei a recomendação da minha colega) mas que parece bastante recomendável neste contexto.
O miúdo não me pareceu estar muito chateado com a tarefa e pareceu aceitar com resignação estas bizarrias do seu director que manda ler livros para encurtar ralhetes.
O problema foi que, no fim dessa tarde, já eu não estava na escola e a mãe do aluno apareceu e explicou a um colega meu que o aluno não ia ler livro nenhum, que ela não permitia e que o uso da expressão “raça” ou “raça galega” referente a pessoas não tinha mal nenhum e sempre tinha sido assim e que ela achava muito bem que o filho assim falasse. Aliás, “os ciganos também são racistas” (lá voltamos nós ao círculo vicioso em que quem entra esquece, que não se ser racista, se isso acontecer, pode ajudar a acabar com o racismo que é retro alimentado). Por isso, vinha expressamente devolver o livro e eu que metesse a viola ao saco.
Voltou na manhã seguinte e, no meio de considerável escarcéu, em que razoavelmente pôs em causa as minhas habilitações culturais e académicas em temas de antropologia, história ou afins, porque o seu conhecimento na matéria era definitivo e inquestionável, declarou sonoramente que o seu filho não lia livros tais e ponto final. Até porque em Portugal não há racismo, informou.
A autoridade dos professores anda assim nestes atalhos. Uma pequena busca na Internet explica facilmente porque o desincentivo ao uso da palavra raça abre toda uma discussão sobre o racismo e sua ocultação e subtileza escondida. Em França estão a pensar tirar a palavra da Constituição. Na Grécia, o partido racista tem votações record.
 E o racismo existe porque, como dizia a douta progenitora do meu aluno, “sempre assim foi”. Mas existe mesmo e vê-lo assim escancarado à minha frente dói no ânimo quando se tenta acabar com ele.
Entretanto decidi tratar de começar a ler o dito livro que sempre aproveitará a alguém.

PS: Naturalmente que, na conversa, com a Excelentíssima Encarregada de Educação não fiquei calado mas até ameaças de queixas a poderes superiores já tive em casos destes. E no fim, manda quem pode (quem será?) e a luta contra a ignorância tem estes limites penosos. Para quem tiver interesse sugiro vivamente 2 links para outras leituras que mostram o problema em faces reais e que os nossos responsáveis políticos deviam ler para saber realmente do que falam ao dizer certas atoardas.