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9.13.2011

Carta a um matemático pela salvação de uma fórmula


Carta a um matemático pela salvação de uma fórmula
Ex.mo. Senhor Ministro da Educação,
Hesitei muito antes de arrumar, sob a forma de carta virtual, estas mal alinhadas palavras.
Quem lhe escreve com atrevimento é um mísero parolo de Viana. Professor vai para 16 anitos, depois de uma razoável dose de estudo, num percurso relativamente bem sucedido, com muitos exames e rigor docente, desde a primária, (já que adiantei um ano, à conta de uma professora rigorosa e acabei, por isso, a ter exame na 4ª classe, coisa rara em gente da minha idade - e não me fez mal nenhum).
Professor do básico, não por falta de alternativa financeira mais compensadora, mas talvez por ter ainda na alma resquícios da vontade juvenil de ser frade missionário ou pelo peso de uma tradição familiar já centenária.
Mas, como diz uma pessoa que respeito muito como educadora, os professores, nem devem ser missionários, nem mercenários e, por isso, convicto de que, na linha das metáforas militares, que a selecção nacional pôs tão em voga, entenderá o que vou dizer, decidi escrever-lhe da trincheira. Director de um agrupamento de escola, a analogia militar fará de mim talvez o capitão de uma companhia da linha da frente (no meu caso, da frente mais dura, coisa para caçadores ou comandos no exército, dada a realidade social complexa do agrupamento onde estou). [1]
E, como diz o Miguel Sousa Tavares, que suspeito tem mais ouvintes nuns minutos, que eu a vida toda (mesmo que possa arriscar que tão excelso cronista acerte menos que eu), estamos todos em guerra.
Guerra contra o défice, dizia ele, ainda há pouco, na SIC, no seu estilo gongórico, sempre simpático aos docentes. Eu continuo a achar que isso do défice é só uma batalha, porque a guerra é contra o atraso histórico do país. E nessa guerra, uma divisão de combate fundamental é o seu ministério. Melhor, o corpo de exercito de que está chefe de Estado-Maior.
“Atrás do Marão não mande a 5 de Outubro….”
Podia falar-lhe de muita coisa, na minha visão limitada de capitão de uma trincheira da província, longe do estado-maior. Hoje, ao ter notícia de uma afirmação que V. Exa. produziu, arrisco a ousadia de lhe falar do processo de selecção dos soldados e das virtudes de manter a matemática a regulá-lo.
Parece-me que, como aconteceu, por exemplo, na 1ª guerra mundial (John Keegan explica isso muito bem e, se tolerar outro abuso, como oficial da arma de História, permita-me que recomende a leitura desse autor de história militar, para nos entender melhor, a nós, os da trincheira) já começou a barragem de artilharia preparatória para, depois da guerra dos 6 anos da avaliação, mais uma arriscada manobra de movimentação de tropas no sentido estratégico errado.
Os soldados da trincheira já vêem a fumaça “de mais um avanço final para a vitória”. O primeiro tiro de canhão pesado deu-o V.Exa. ao dizer de forma, que cito descontextualizada, sob a forma do soundbyte que apareceu na imprensa, no caso, o Correio da Manha online:
"Nuno Crato pretende que a colocação de professores seja "mais descentralizada", defendendo que um professor em Bragança não deve ser nomeado pela 5 de Outubro. A este soundbyte respondeu João Dias da Silva, líder da FNE, “segunda maior estrutura sindical de docentes”, o primeiro dos últimos, que admite "a possibilidade" de serem as escolas a contratar os docentes, mas defende que "actualmente não há condições para uma mudança tão radical". O João Dias da Silva, oficial desse corpo de tropas auxiliares ao Estado Maior, que são os sindicatos, com todo o respeito, acho que quis parecer não entender bem o que V. Exa. quis dizer e, por isso, dá uma no cravo, outra na ferradura. V.Exa. fala de nomear e ele fala de contratar o que são coisas bem diferentes, por exemplo.
Na trincheira, não temos muito tempo para pensar, fazer distinções tão subtis e ou para grandes pausas reflexivas, (tão ocupados estamos a preencher aplicações informáticas para os múltiplos Estados Maiores centrais, locais e regionais, às ordens de sargentos e outros subalternos, cuja carreira, na maioria, não foi feita como a nossa a dar o corpo às balas). Pelo meio, ainda combatemos a ignorância dos alunos, mas lamenta-se que, gente ao serviço de sindicatos, e que o Estado paga, ao dispensá-los da profissão, para produzir uma reflexão estruturada sobre estas coisas, tenha um discurso tão pífio e pouco frontal.
Se bem percebi (e lamento o abuso se entendi mal) o que V. Exa. quer é acabar com o concurso nacional de docentes.
Municipalização ou “solução escolástica”? E o moral das tropas?
Espero que não queira ir pelo caminho da municipalização. Sobre esse caminho, e para poupar palavras, pode verificar-se em língua portuguesa, a via do Brasil (que, curiosamente, inflecte agora, com a criação do “piso salarial” dos professores, num sentido menos municipalista) e, melhor ainda, recordar o que diz Rómulo de Carvalho na sua Historia da Educação (um gosto de leitura que, creio, partilhamos) sobre o que foi a experiência falhada de municipalização dos professores da 1ª Republica (ficaram meses sem salário e a cunha proliferou). Não me parece que hoje corresse melhor (acho até, que ía ser bem pior).
A regionalização, legitimada democraticamente, que poderia ser um bom caminho (em Espanha e Alemanha, por exemplo, corre bem na educação), os partidos que apoiam o governo, não querem.
Descentralizando, resta o modelo de pôr as escolas directamente a escolher os professores.
Bem sei que muitos colegas meus, capitães (e até majores) de trincheira como eu, defendem isso. Muitos, bem intencionados, e iludidos com generosidade, mas, outros, com interesses mais vastos: capitães, mas com vontade de ter poderes de general, diria eu, em termos simples….
Eu, que já tive esse poder (a minha escola é TEIP e pode escolher professores) recuso-o, acho errado e uma forma de autonomia perniciosa, se desregulada, e, digo-lhe que não é por aí que vai haver um acréscimo significativo de qualidade ao sistema de ensino.
Nenhum sistema pode garantir que numa escola só há professores muito bons e, por isso, sempre estaremos reduzidos ao menor mal e evitar o que o “local” traz neste país personalista. Em alguns casos pontuais, pode haver melhorias mas, no cômputo geral iria fazer piorar muito o sistema em alguns aspectos que, num Estado moderno, não são de desprezar. Um deles é algo que, continuando a usar metáforas militares, pode ser descrito como o baixar do moral das tropas.
Como nota lateral, faço a V. Exa. uma primeira prevenção sobre aqueles que, tendo sido seleccionados para docentes pelo processo actual, acham que este é uma porcaria que não presta para seleccionar outros. Se o processo é tão fraco, na descrição das formulações que fazem, o que quererá dizer aquilo que dele dizem, sobre si próprios, que nele tiveram sucesso e foram seleccionados?


O “escolhês” das escolas não garante as melhores escolhas
Sobre a frase que proferiu, tem V.Exa naturalmente direito à sua opinião (desculpe o atrevimento se parecer que duvido) e, agora, mais ainda, o poder de a impor, mas convém que haja precisão. A “5 de Outubro” realmente não nomeia ninguém: sendo os professores funcionários do Estado, são nomeados pelo Estado pelo processo que este arranjou, sendo um Estado unitário.
E, Bragança ou Viana do Castelo, nem são sítios particularmente interessantes para discutir esta questão visto serem sítios em que nem há assim tantos professores. Suspeito que, nas ruas das imediações da 5 de Outubro, há mais professores nomeados por este processo que em alguns concelhos de Bragança ….
Portanto, a frase diz pouco sobre as questões que me parece querer colocar e me preocupam.
E, presumindo que não vamos já discutir a privatização do ensino público, e os professores deixarem de estar vinculados a entes públicos (e repare-se que não disse Estado), acho que o que a tirada “marketeira” quis salientar foi que quer discutir o processo de selecção pública dos professores (coisa independente, numa análise objectiva do problema, de saber quem lhes paga e de quem dependem).
Mesmo sabendo que essas questões virão atreladas, a prazo, vou focar-me só na questão do processo e critérios de selecção. Mais do que “quem” ou “onde” interessa o “como”….
E, a premência de lhe escrever isto tem exactamente a ver com o facto de verificar que se deixou contaminar pelo preconceito contra o concurso nacional de professores, que grassa em alguns inovadores tácticos do nosso exército.
Liberal marcado pelo amor profundo da liberdade dos anarquistas, tenho uma face, às vezes, bem conservadora. Por isso, custa-me muito aceitar que se mude um processo estudado, testado e velho de décadas, em especial, se envolve muita gente e muitos pressupostos, em nome de inovações mal testadas e com poucas garantias (e que quando experimentadas, correram mal). Para moderninho, já chegou o Magalhães….
Acho que, neste caso, consigo começar por interessar V.Exa., na minha perspectiva, se salientar a beleza de o processo, bragançano ou lisboeta, todo ele, se basear numa fórmula matemática.
Uma das razoes porque é tão mal compreendido é isso mesmo: o défice matemático do país faz com que uma larga massa de pessoas tenha dificuldade de entender que milhares de pessoas sejam expeditamente ordenadas com equidade por um processo cujo motor é uma fórmula matemática.
Vou mais longe na linguagem: algum “escolhês” acrítico, tão ou mais perigoso que o eduquês que tão utilmente zurziu, tem dificuldade em aceitar que um processo de escolha, racional e de larga abrangência pública, seja real escolha de valor precisamente por ser baseado num número.
Nesse “escolhês” acrítico, escolha é entrevista (subjectiva), escolha são critérios da cabeça de cada director (subjectivos e perigosamente arbitrários), escolha é manter quem está e antes foi “escolhido”, escolha pode até ser, “ser cá da terra e conhecer a escola”.
Muitos lhe dirão que o concurso nacional é caro, por envolver milhares de pessoas. Mas, mesmo que deixe de ser nacional, a fórmula da graduação, ainda que adaptada (tudo pode ser sempre melhorado) merece ser mantida.
E, quanto ao concurso deixar de ser nacional, digo-lhe que, mesmo isso, é perigoso, dada a fricção entre oferta e procura de emprego docente, que não estão igualmente distribuídos no território nacional e nos vários grupos de recrutamento. Um concurso nacional serve um objectivo de interesse público: corrigir essas assimetrias (afinal há concursos locais de escolas que, já hoje, ficam desertos….).
O concurso de docentes baseado na fórmula de graduação é transparente (todos controlam todos o que é a melhor maneira de evitar a corrupção), prático e rigoroso.
A opinião pública dos envolvidos vê-o positivamente e, se experimentadas alternativas, valoriza-o de seguida (veja o que aconteceu nas escolas TEIP em que, desde a morada perto da escola, “o ficas porque já estiveste” ou até cursos de 25 horas quase tudo foi alçado a factor decisivo para “escolha” de docentes).
A DGRHE pode ser uma estrutura pesada e cara (e às vezes ter falhanços com custo político) mas, se a vir como um bom exemplo de um sistema de gestão partilhada de recursos entre 1200 instituições públicas (as escolas e agrupamentos), que serve para regular, por um processo transparente, um concurso de milhares de participantes, talvez se perceba como a alternativa pode ser pior.
Imagine todos os concursos geridos localmente, com critérios completamente desregulados (alguns abstrusos), e toda a gente a fazer entrevistas e listas com os candidatos (que hoje concorrem uma única vez), a preencherem milhares de formulários, todos pensados de maneira diferente, e muitas vezes mal, e a concorrerem milhares de vezes, para agarrar a oportunidade que acham que vai ser a tal.
Pelo lado dos custos verá que o concurso nacional (ou largamente territorializado) com lista graduada é mais barato que a sua atomização, com centenas ou até milhares de concorrentes em cada um, em milhares de mini-concursos (termo de má memoria, daí que se recomende uma visão histórica do sistema, para se ver que às vezes algumas novidades revolucionárias não o são bem….).
Graduação profissional: não é como a Vénus de Milo mas tem a beleza da transparência
Pelo lado do Estado de Direito verá que a ideia actual, ou outra adaptada, mas conexa, de graduação profissional é a mais adequada para um concurso, a que sempre concorrerão, muitos milhares de candidatos, para milhares de escolas.
E, já agora, verá também, que mesmo que localize os concursos, para que Bragança seleccione para Bragança, sempre terá de prever mecanismos de desentupimento do caminho dos que querem leccionar seja onde for no território nacional – se há 1200 agrupamentos, vão concorrer 1200 vezes em poucos dias?
Bem, isso sem duvida animará a economia nacional, embora ao nível “do abrir buraco, fechar buraco” de Keynes….
No “escolhês” mais radical há quem defenda que o caminho é impedir os professores de escolher tantas escolas…. Os professores seriam assim escolhidos mas sem possibilidade de eles próprios escolherem….
A boa noticia para nós da trincheira é que o mercado das escolhas produz consequências imprevistas e às vezes dá nisto: se limitar o número de escolas a que se concorre, muitas vão ficar desertas …. (coincidência curiosa, quase aposto que vão ser aquelas que têm piores resultados…. é o mercado e a sua mão invisível…)
Porque, além da questão processual (o processo de concurso), uma parte do que já lhe ouvimos sobre isto invoca o problema da escolha para cada escola dos melhores professores para que elas melhorem.
A graduação profissional, conceito hoje em uso, pode não parecer grande pistola para esse desiderato mas foi a solução matemática para simplificar e equacionar a questão face à quantidade.
Tive a honra de, numa luta, que travei com tantos outros, sobre a necessidade de o arredondamento do número, que representa a graduação, passar a ser à milésima para evitar empates, conhecer um dos matemáticos que redigiu e concebeu o sistema na sua forma actual.
E lembro-me do que me disse: num concurso com tanta gente era preciso (e quando a coisa começou, nem havia tanto poder de computação) um método simples e expedito, que permitisse ordenar os candidatos sem complicar e traduzindo os critérios numericamente, para ordenar. O concurso nacional é assim na prática a combinação operativa e coordenada de milhares de concursos locais fundidos por um critério sintético: a graduação.
Se criarmos o pressuposto de que o melhor professor é o que tem melhor formação pedagógica e científica e o que tem mais experiência e se considerarmos que, para facilitar a análise, vamos ponderar a formação na nota que o habilita inicialmente para a função docente (sem distinguir os cursos, visto serem todos reconhecidos pelo mesmo Estado) e que a experiência se mede em tempo de trabalho anterior ao concurso, podemos criar uma fórmula, em que a nota do curso é adicionada à experiência, sendo que um ano de experiência se convenciona valer um valor (meio, se for “o dar aulas” antes do curso).
Essa fórmula arredondada à milésima representa experiência e formação. Pode V. Exa. juntar-lhe outros aspectos (ou ir atrás do El Dorado ilusório e subjectivo do "perfil"), mas preservando a coerência interna (adicionar valores para quem tem mestrados e doutoramentos, bonificar cursos que se consideram melhores, bonificar certo tipo de experiências, até considerar as avaliações anuais – coisa que continuo a achar disparatada, por princípio -, modificar o valor relativo de cada uma das parcelas, criar limites máximos ao crescimento da graduação, etc.) salve a ideia de uma fórmula e use-a como motor do processo de selecção, seja ele feito em Bragança ou na 5 de Outubro.
Uma das virtudes da Matemática é a simplicidade na representação do raciocínio (coisa que, reconheço, este texto não tem…. mas eu sou de Letras…). Neste caso é também uma forma de garantir transparência e honestidade de processos.
Por isso, escrevo virtualmente ao Ministro, a pensar no matemático, apelando à clemência pela fórmula porque os que, em Bragança ou em Viana, na trincheira, estão preocupados com o interesse público, não estão nada preocupados que a 5 de Outubro nos nomeie por um critério claro e transparente sendo, no custo-benefício, as alternativas, bem piores.
Com os melhores cumprimentos,
Luís Sottomaior Braga


[1] Bem, o posto analógico até poderia ser capitão mas o salário não dá para metáforas militares …. O meu salário com “suplemento de comando” (aquela mirífica retribuição dos directores, que uma anterior Generala Chefe de Estado Maior tanto gabou) para uma “companhia” de 140 professores, 77 trabalhadores não docentes e 1000 alunos do ensino regular – fora os 1200 “irregulares” das novas oportunidades, dá 75% do salário de um capitão da GNR. Os números do contingente davam para me comparar a major mas aí o salário ainda desmerecia mais…. Ao olhar para isso, lamento o dia em que, numa junta médica, cessei a carreira militar (no SMO) em soldado-cadete.

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