vistodaprovincia

10.10.2010

Somos metecos ou cidadãos? Entre a rua, a greve e os partidos.

Uma das principais críticas que os historiadores e cientistas políticos fazem à democracia grega é que o número de cidadãos não correspondia a mais de 15% do total dos habitantes da cidade de Atenas. 85 em cada 100 habitantes estavam excluídos, ou porque eram escravos, ou porque eram metecos, isto é, estrangeiros, ou porque eram mulheres. Os metecos e as mulheres possuíam algumas formas de participação informal mas, no que mais importava, votar e ser eleito, para os cargos dirigentes da polis a sua presença era impossível e nada interessava a sua perspectiva. Os escravos, embora bem tratados face ao comum do resto do mundo antigo, trabalhavam e nada podiam influir na vida colectiva, reduzidos à sua condição de coisas. Os metecos pagavam impostos.
Os 15% de cidadãos conduziram uma revolução política nos hábitos ocidentais, de que ainda somos herdeiros, mas os que ficam fascinados com a qualidade da democracia ateniense têm de levar em conta as circunstâncias de tempo e lugar.
A comparação com o presente também.
A nossa habitual tendência para a sobranceria face ao passado leva muitas vezes a apontar o atraso do passado e não ver como, mesmo com defeitos, esse passado conseguiu ser mais vanguardista, face às circunstâncias, do que nós somos.
Para fazer essa reflexão para mim próprio fui procurar alguns dados. Hoje todos somos cidadãos desta república centenária. Os estrangeiros têm direitos muito equivalentes aos nascidos e naturalizados portugueses e até podem votar em vários actos eleitorais. As mulheres são cidadãs de corpo inteiro e têm larga participação na vida social. Apesar das perversões do tráfico de pessoas, a escravatura é legal e socialmente proibida e perseguida.
15% dos habitantes intervinham até ao grau máximo possível ser eleito na Polis Ateniense. Quantos intervêm na portuguesa?
Para começar é preciso esclarecer o que é isso de intervir. A participação na vida pública numa sociedade aberta, como a nossa tenta ser, tem muitas faces que não se esgotam na eleição ou presença em órgãos políticos. Os cidadãos têm acesso a funções públicas, mas veja-se o mau funcionamento dos concursos públicos e, em especial para funções dirigentes (em que, para se vir a ser, pouco interessa a formação mas sim ter sido nomeado antes para aquilo a que se concorre) num sistema que faz com que esses concursos confirmem nomeações prévias. Os cidadãos têm acesso à participação através da sociedade civil mas veja-se a má qualidade do nosso associativismo, onde os dirigentes se eternizam e a participação é baixa e onde, aos nossos menos de 20% de participação, podemos contrapor os 60 ou 70 de países nórdicos ou os 40 a 50 da Espanha ou França, números que, ao contrario do défice, ninguém quer comparar. A sociedade portuguesa progrediu na igualdade mas não deixa de ser uma das mais desiguais da OCDE ......
Esse último facto e suas consequências devia fazer-nos pensar nessa mania, fulgurantemente adoptada pelo poder de nos comparar à OCDE. Essas comparações, num contexto de desigualdade como é o nosso, dão muitas vezes a impressão do ridículo de comparar o nosso FIAT 600 de motor gripado com o Ferrari dos outros e depois queixarmo-nos que deita muito fumo ou anda pouco....
Mas função pública, associativismo ou maior igualdade são apenas parte do que acaba por condicionar o exercício de poder numa democracia, quem o exerce e como lá chega.
Na Grécia era um grupo restrito de cidadãos.Em Portugal são aqueles que pertencem a partidos políticos.

Contá-los não é fácil. Na verdade, não são todos os militantes e activistas que exercem o poder político. São os dirigentes desses que o fazem. Mas para simplificar vamos assumir que ser militante partidário nos dá acesso a participar na vida política numa forma mais presente e activa.
Permite aceder a cargos no poder estatal ou autárquico por eleição e até por nomeação, uma das máculas da nossa democracia. Na verdade, os candidatos a deputados, autarcas ou membros de governo ou órgãos políticos ou são militantes ou notáveis simpatizantes de partidos políticos.
Mas o grau mais alto de poder na nossa democracia só pode ser exercido por quem tiver maioria no parlamento e, por essa via, chegar ao Governo. E esses foram 3 partidos PS, PSD e CDS.
Para saber quantos são os que mandam efectivamente na política do País, porque a mandar no país podem ser menos (porque os políticos aceitam, talvez pelo seu número e processo qualitativo da sua escolha, acabar mandados por vias não politicas), é preciso contar os militantes dos partidos.
Tarefa difícil. Uma pesquisa na internet não é fácil. Há poucos dados. Depois acontecem coisas curiosas. Se escrever “militantes + partidos” ou “militantes” e o nome de partidos no google aparecem não números mas, por vezes, séries de notícias sobre expulsão de militantes..... Curioso.
Mas, depois de algum tempo e com algum arredondamento dos dados, pude concluir que o PS rondará os 77000 militantes, o PSD, 73 mil e o CDS, os 15 mil. Dados talvez empolados porque vêm dos próprios partidos. Assim, é deste caldo de cerca de 165 mil pessoas que sai a classe política do país. São eles os deputados, os autarcas, os nomeados para cargos. O PCP, que já não é parte do Governo há décadas, alega ter 59 mil e o BE não é muito claro mas será da dimensão alegada pelo CDS para menos. Assim, considerando os 3 partidos do arco do poder, como agora é fino dizer-se, temos 1,97 % dos portugueses a mandar na política dos outros 8,6 milhões de eleitores, considerando a soma de PSD com PS e CDS.
Juntando os militantes dos partidos que fazem parte do parlamento e os que têm representantes em autarquias dificilmente chegaríamos aos 4% face ao eleitorado. E considerando a população total do pais o número é ainda menor.
Como quem não for militante de um partido dificilmente chegará ao Governo, e talvez menos ainda a uma autarquia, este é um dado importante sobre a qualidade da nossa democracia.
E não cabe aqui comparar com outros países, comparação que daria optimismo e pessimismo.
O problema é absoluto. Será que o estado a que isto chegou não tem a ver com o facto de uns meros 4%, pouco renovados e muito mobilizados pelo poder, mas isolados da sociedade, decidirem as políticas e quem as realize e os restantes se limitarem a assistir, votando e confirmando em festins eleitorais a escolhas que o grupo restrito produziu?
Por constatar isto é que me provoca recusa epidérmica a fulgurante diatribe anti-partidos que, por vezes, ouço. Os partidos, e o eles exterior a nós que por vezes enunciamos para criticar, são o que deixamos ser. A visão dos donos de casa e dos pais de família está pouco lá porque as reuniões são a horas inconvenientes e as grandes questões não incluem pagar as contas ao fim do mês. Que peso poderá ter o custo de vida para quem não o sente, como aquele deputado se queixa dos magros 60 euros de ajuda de custo que recebe por dia além do salário.....
Portanto, para não sermos metecos que só pagam impostos temos de entrar nos partidos, mudando o rumo por dentro. Sofri na pele a dificuldade do que falo. Conheço bem o caciquismo, caudilhismos, ignorância e limitação de vistas que grassa nos partidos. Fiz parte de um, com a perspectiva que aqui expliquei. Cansei-me e desisti. Como, felizmente, a minha vidinha não precisa ou precisou deles acho que, do meu ponto de vista individual, até foi uma boa decisão demitir-me daquele a cuja história me ligo mais que ao seu programa e acções actuais.
Contudo reconheço que a falta da visão do homem comum imposta aos dirigentes que, mesmo a nível local, são geralmente pouco estudiosos e estratosféricos, faz falta. O mais triste é ver como quem tanto fala da democracia acaba, dentro dos partidos e nas suas grupusculares estruturas, a votar em si mesmo para continuar a votar no costume.Costumava dizer, nas minhas intervenções em órgãos locais e nacionais da JS e PS, que, depois das brilhantes intervenções anteriores, ia só falar um parolo de Viana. Essa ironia era, às vezes, gozada por alguns pouco afoitos a alguns exemplos literários do género. Mas a verdade é essa: embora genericamente governados por provincianos que cuidam do interesse nacional no prisma do que o estrangeiro pensa, precisamos que os parolos livres de Viana, Bragança, Beja ou do centro de Lisboa entrem na vida politica. O número aqui conta porque é o número que dá vida. Por isso, em vez de desânimo com a política é preciso vontade de mudá-la. Ou alguém acha que a crise social e económica se vai mudar só com 4% a mandar?
O nosso primeiro-ministro com a ignorância histórica que o caracteriza fala muito da maior crise dos últimos 80 anos (referindo-se a 1929, que, se soubesse mais alguma coisa, veria que não foi bem o que julga no país em que está a falar....)
Por mim, prefiro ir mais longe e pensar na crise de 1383-85. Mais do que a crise económica e financeira, esse foi o momento em que, sem os Portugueses o quererem, mais perto estivemos de perder a independência sem chegarmos a perdê-la. E foi também o momento em que o povo e a participação fizeram a entrada na nossa História. Sócrates passará à História, e com pouco a merecer ser recordado, mas o que fizermos por causa do seu mau governo será a nossa vida....porque, mesmo eu, que nunca nele votei e saí do meu partido por causa da repugnância que a figura me causava, tenho de reconhecer que fomos nós que o inventamos a ele e aos outros eles e não só os 77 mil que em última linha o escolheram com mais de 90%....