vistodaprovincia

11.27.2006

Inquérito ao consumo de violência nas escolas: um terço dos alunos já consumiu

Um terço dos estudantes já foi vítima de violência nas escolas. Este o título, com chamada à primeira página, do destaque de Diário de Notícias de 21 de Setembro.
A DECO fez um inquérito a 37 mil alunos e 9 mil professores de 204 escolas e foram estes os números que encontrou. Um quarto dos alunos, e em especial os que tem entre 12 e 14 anos, queixa-se de já ter ser sofrido ou ofensas corporais ou assaltos ou roubos. 10% dos professores também se queixam disso. Em síntese, o problema terá resultado na perda de 30 mil aulas no último ano lectivo. O estudo (que friso, não li na Proteste, mas apenas conheço da notícia) tinha uma componente interessante que era, além de perguntar se tinha sofrido de actos de violência, questionar sobre a percepção dos alunos sobre a segurança da escola. Na linha de muitos estudos sobre delinquência e criminalidade separava, portanto, e bem, os factos da insegurança do sentimento de insegurança.
Na questão do medo e da psicologia da violência esta distinção é uma boa prática metodológica. Isto porque um dos dados mais interessantes do estudo é que 2 em cada 3 estudantes não contam aos pais as ofensas verbais ou as agressões (que em 5,1% dos casos terão até cariz sexual).
Assim se evidencia outro dos temas clássicos desta área de estudo: as cifras negras ou, se preferirem uma forma mais redonda de dizer, a dificuldade de percepcionar o problema porque a vitimação inclui o silêncio.

O ranking escolar da violência

O estudo tenta fazer um ranking de escolas neste parâmetro. O DN indica as 10 escolas mais e menos seguras (em nº alunos a indicar vivência de episódios de violência e na percepção de segurança). O instrumento vale o que vale como forma de situar o problema. Naturalmente que os mal classificados criticarão o estudo, tentando revelar as suas fragilidades. Os bem classificados irão usá-lo como arma publicitária e política. Parece-me, pela leitura da notícia, que o estudo tem uma base larga e sólida. A DECO é uma entidade prestigiada e séria e o autor do estudo, na sua entrevista ao DN, evidencia uma perspectiva sensata do problema, por exemplo, ao explicar um dos paradoxos dos resultados: “não há uma causa directa entre o grau de vitimação e o sentimento de insegurança porque nem todos os problemas de violência têm a mesma gravidade e alguns alunos convivem melhor com este tipo de situações do que outros”. Em termos simples, uma cena de pugilato numa escola habitualmente sossegada terá mais reflexos na percepção de insegurança que 2 ou 3 numa escola em que elas são habituais. A habituação à violência é, por isso, um dos problemas que o estudo levanta. Os resultados trazem ainda uma informação interessante sobre o programa Escola Segura e a percepção da sua ineficácia.
Com algum conhecimento de causa e alguma parcialidade (pois estive estreitamente ligado ao programa em Viana do Castelo durante 5 anos) creio que é uma injustiça ser assim julgado pela opinião pública. Pioneiro dos programas de policiamento comunitário e de proximidade, o Programa é julgado pelos responsáveis escolares como um passo muito importante para a comunicação escola/forças policiais. Apesar dos números de ocorrências estarem a subir, isso até pode resultar (e não estou a dizer que o seja, mas conheço casos semelhantes em que isso aconteceu) da própria eficácia do programa. Polícias eficientes registam mais ocorrências, se patrulharem mais. A ironia é que ao registarem mais, parece que há mais do que antes só não se via porque não se registava. Cá está portanto o problema das cifras negras. Muitas vezes mais polícia nas ruas resulta em mais “criminalidade”… porque há simplesmente mais registos. E imaginem se o programa não existisse…
No entanto, acho que números são números e não se devem varrer para debaixo do tapete só porque não nos agradam.

O ranking e o concelho de Viana do Castelo
Mas de tudo o que resultou do estudo e da notícia do DN, o facto que mais me surpreendeu foi ver uma escola onde já leccionei entre as 10 menos seguras. Na verdade, no ranking das 10 escolas menos seguras, no item resultante da referência dos alunos a factos de violência, aparece, na notícia do DN, em 8º lugar da insegurança o Agrupamento de Escolas de Arga e Lima, agrupamento de escolas que abrange território dos concelhos de Viana do Castelo e Ponte de Lima e que inclui além de jardins de infância e escolas do 1º ciclo, a Escola Básica do 2º e 3º ciclo e Secundário de Lanheses.
Segundo o DN, 49,6% dos alunos participantes dessa escola disseram ao questionário que já tinham sido vítimas de factos de violência. Para ver o valor efectivo desse dado convém ler a citação do técnico autor do estudo feita atrás sobre a variedade de situações de gravidade diversa incluídas na etiqueta “violência”. Podemos até discutir o valor da amostra, o número de alunos inquiridos ou a qualidade técnica do questionário e buscar aí explicações. Contudo, confesso que, depois de um ano a leccionar ali, fiquei muito surpreendido que metade de um grupo de alunos daquela escola (seja qual a for a dimensão) diga que já sofreu violência naquele espaço escolar.
Leccionei a um dos grupos mais vitimáveis (5º e 6º ano), os mais novos, fui director de turma e nunca tive a percepção do que estes números vêm dizer. Provavelmente, noutras escolas do concelho seria expectável um resultado pior. Se questionarem qualquer conhecedor das escolas do concelho sobre qual era a escola de Viana que esperariam ver em tal lugar num estudo nestes creio que Lanheses e o seu agrupamento não apareceriam sequer entre as 4 primeiras do concelho, quanto mais 8ª do país. Às tantas é o tal fenómeno detectado de que os alunos não contam. Embora a esta explicação sempre possa perguntar-se porque terão dito no inquérito o que não contariam nem aos pais….
Vou tentar ler o estudo com mais profundidade, mas até lá, neste espaço num jornal regional, deixo esta nota de dúvida incrédula e o convite à reflexão: o que poderá explicar os dados se não for deficiência do estudo?
Sugiro hipóteses e espero que os órgãos da escola (que, noutros momentos, em que os rankings de resultados foram favoráveis, também o fizeram) possam ajudar publicamente a reflectir sobre isto. A grande dispersão do agrupamento e a existência de viagens de autocarro com alguma extensão pode ser uma linha de reflexão (a ser assim, a violência referida, que não será de tipo grave, não é propriamente escolar mas exterior ao espaço escolar, embora entre alunos e a justificar mais atenção da gestão). Lateralmente a existência de alunos do 5º ao 12º ano na escola-sede pode explicar parte do problema). O estilo de gestão disciplinar que percepcionei, até o critiquei por ser, como então disse, paternalista e centralista (e isso também pode ser uma explicação). Muito embora o tenha criticado e tivesse divergências registadas por escrito sobre o Projecto Educativo da Escola e o seu modelo de funcionamento, a justiça manda que diga que a não ser que estivesse iludido, não havia qualquer desleixo em matéria de manutenção da disciplina e o Conselho Executivo é muito atento a estas questões (uma atenção talvez mal dirigida, mas atenção). Por isso, os números registados são um aparentemente um mistério. Mas terem sido publicados num jornal nacional justifica que não fiquem esquecidos.
O tema há-de ser mais falado no futuro e sobre ele queria só deixar mais umas notas de passagem sobre a questão geral: o falhanço da formação cívica como área curricular no ensino básico, às tantas, deve ser relacionado com estes dados. Em termos simples nunca se conseguiu contrapor entre os estudantes uma cultura de cidadania à cultura do safanão. E depois convém não esquecer o estafado chavão de que a Escola reflecte a sociedade.
Luís Sottomaior Braga

Estamos quase em branco na formação cívica

“Não há sujeição tão perfeita como aquela que conserva a
aparência da liberdade; dessa forma, cativa-se a própria vontade”

Rousseau, Émile

Recentemente numa polémica, essencialmente jurídica, e que, por isso, até envolve tribunais, alguém decidiu, depois de ter publicado um panfleto agressivo, responder, ante um pedido de explicações, com uma fotocópia de um dicionário. Estava em discussão a palavra arbitrário, que o recorte visaria explicar-me. Ignorante como sou, sem dicionário não ía lá. Por acaso é um hábito em que persisto: consultar o dicionário. No caso, nem faria tanta falta, sendo uma palavra que gosto muito. De formação filosófica kantiana, por influência de 3 bons professores de filosofia que tive, sempre me recordarei da distinção que o filósofo de Koenigsberg faz entre livre-arbítrio e liberdade.
Mas não é pelos domínios da filosofia que quero entrar neste texto. Falemos de política. E o horror à política, que se mantém na nossa sociedade como rasto do salazarismo, deve ficar acicatado ao iniciar assim o assunto mas, no caso concreto, embora fossem só eleições com 200 votantes, era de política que se tratava. E isso leva a ter de falar da condição essencial para um cidadão viver numa sociedade democrática em pleno e participar nela livremente: conhecer, entender, reflectir, em suma, ser educado para cidadão.
A pessoa em causa ficou branca de raiva pelo facto de se ter afirmado numa carta numa campanha eleitoral que uma decisão por si que tomada era ilegal e arbitrária. A questão é tão clara que ainda a discuto nas instâncias judiciais (e ganhei na 1ª instância) mas a verdade é que não se pode deixar em branco todo o restante enquadramento que leva a que um requerimento formal possa ser entendido como insulto. E isso tem a ver com a educação para a participação e cidadania, aquilo que supostamente se queria fazer com a área curricular de Formação Cívica, que agora existe nas escolas.
Um dos problemas infantis da nossa Democracia é a má preparação de alguns decisores e o hábito, de matriz também salazarista, de aceitar pareceres de superiores hierárquicos como fundamento para decisões próprias. Pensar pela própria cabeça é o caminho da Liberdade, seguir o caminho que outros apontam com meros argumentos de autoridade, pode ser livre-arbítrio, mas não é Liberdade verdadeira, no sentido ético da palavra. Mas para mudar isso é preciso educar.
No caso concreto do início, a leitura da lei em discussão até é clara, e só mesmo por se achar que seja ignorante, precisaria de dicionário para não ver o fundamento do que se dizia no caso.
A nossa Democracia foi resultante de um processo revolucionário mas, curiosamente, não significou uma mudança radical dentro do Estado e na sua mentalidade burocrática. A culpa não é dos Governos, nem das Leis, nem do sistema, nem de outra coisa que não nós mesmos, os cidadãos.
Na verdade o primado da Lei sobre as determinações internas da administração, grande conquista do século XIX, ainda não reina sobre a actuação quotidiana da administração. E porque nós deixamos, sempre que deixamos passar em branco algo que permita o estado de coisas. Nos serviços de vários Ministérios reinam o ofício, o despacho, a pérola chamada despacho normativo, até o regulamento. São comuns os casos em que pessoas, que deviam ter obrigação de ser informadas (quanto mais não seja porque são professores e às vezes até leccionam formação cívica), dizem que vão consultar a legislação e na verdade vão ler despachos ou até meros ofícios.
Poucas assembleias terá havido em Portugal com a qualidade da Assembleia Constituinte de 1976 e, desde então, ficou claro que, em Portugal, legislação (isto é, Lei, palavra para norma com dignidade elevada) são os Decretos-Lei, feitos no Conselho de Ministros, as Leis da Assembleia da República e os Decretos Legislativos Regionais. Quem tenha feito a velha Introdução ao Direito do 10º ano saberá, por exemplo, o mínimo sobre critérios de interpretação de leis e, pelo menos, terá o senso de perante questões mais difíceis fazer recurso da “advocacia preventiva”, que tanto advoga o actual Bastonário da ordem respectiva, gastar uns euros dedutíveis e perguntar a um jurista livre e só comprometido com o cliente (isto é um profissional liberal). Mas se isto tem a ver com a acção, mais chocante é verificar que hoje existam em Portugal professores que não entendam o conceito de Primado da Lei, não para usar, mas para explicar, que não saibam o que são órgãos de soberania, que não saibam o básico sobre a estrutura das leis e da Constituição, que passem em branco por conceitos básicos dos mecanismos de uma eleição. Que não saibam é mau. Pior é que, mesmo não sabendo, possam ser considerados habilitados para ensinar formação cívica a um nível de ensino desde que estejam habilitados para ensinar outra coisa qualquer. Como a área curricular de educação para a cidadania pode ser atribuída a qualquer professor, e não tem programa em sentido estrito, qualquer um pode dar. Numa Democracia, que quer crescer e em que no sistema educativo tanto se fala de educação para a cidadania, não se podia também mudar isto no sentido do rigor, em que agora tanto se insiste? Esse sim seria um rigor com substância e com futuro.

Luís Sottomaior Braga